A biruta de aeroporto e a tempestade no horizonte.

Marcelo Guimarães Lima



Marcelo Guimarães Lima,  Tempo Instável, 2017




O jornalista Paulo Moreira Leite escreve sobre as idas e vindas do sr Fernando Henrique Cardoso, o ex-presidente que se tornou, junto com seu partido, avalista do Golpe de 2016. Tal qual "biruta de aeroporto" (expressão que Dilma Rousseff consagrou na hoje distante era da democracia brasileira contra seu adversário do PSDB: o então “presidenciável”, hoje golpista, José Serra) o sr FHC diz "n'importe quoi" (expressão francesa que significa: "qualquer coisa"), afirma isso e aquilo e se desdiz no próximo minuto.

Aparentemente, a mais recente declaração do ex-presidente do “consenso de Washington” e do neoliberalismo caboclo (a regressão neocolonial envernizada pela mídia e os ideólogos de sempre e vendida como modernização) pede a renúncia do falso presidente, o golpista Michel Temer. E isso, logo após a declaração de seu partido de apoio ao golpe e ao golpista Temer. Sem dúvida, como observou o sr FHC, e igualmente o jornalista Paulo Moreira Leite, vivemos uma situação de crise geral no país na qual as incertezas se acumulam e se desdobram em mais incertezas em um tempo acelerado.

Como observa Paulo Moreira Leite, é possível pensar que FHC (tal qual discípulo do mestre Chacrinha, o antigo “comandante da massa”, segundo a canção de Gilberto Gil) veio para confundir, faz da confusão seu “método” e sua meta de intervenção na conjuntura com declarações públicas solicitadas ou não, oficiais ou oficiosas, sobre a situação atual e o que fazer e esperar nela. E no entanto, ao desdizer o próprio partido, o sr FHC mostra o grande impasse do golpe iniciado pelo sr Aécio Neves em conluio com o PMDB, a mídia, o judiciário e os demais partidos da direita. O que poderia ser interpretado, segundo o jornalista, como um início de reavaliação da estratégia da via golpista ao poder do neoliberalismo peéssedebista, partido e programa derrotados seguidamente nas urnas pelo moderadíssimo e popular PT. Neste sentido, antes de avaliar com alguma seriedade o que diz hoje o sr FHC, seria prudente esperar a próxima mudança dos ventos locais (1), por mais modesta que seja, e ver onde aponta a biruta do partido de Aécio Neves e de José Serra.

No momento atual em que um (des)governo espúrio se sustenta no frágil equilíbrio das disputas internas das forças golpistas e no temor do clamor popular antigolpe, se evidencia a profunda incompetência dos golpistas em administrar o caos que eles próprios promoveram.

Neste momento em que as contradições e disputas entre as facções golpistas recrudesce, o crescimento das manifestações de rua, dos movimentos populares e das lutas dos trabalhadores, da juventude, estudantes, intelectuais, negros, indígenas, trabalhadores rurais, e mesmo dos que tardiamente se dão conta da gravidade da crise e do golpe contra o país, contra a economia nacional, contra a população em geral (incluindo a nossa sempre desorientada classe média), o desenvolvimento da luta antigolpe, mesmo com seus vários percalços e dificuldades, ganha alcance e impõe efeitos na conjuntura apesar da manipulação midiática, da censura, da repressão judicial e policial, e apesar da enorme farsa legislativa que promovem os partidos golpistas e seus políticos. Alheios ao país real, os políticos golpistas agem como se habitassem uma outra dimensão da realidade, outro mundo ou outro universo.

Tentando acelerar as malfadadas “reformas” (retirada de direitos e destruição de garantias legais) como se não houvesse amanhã, como se o país tivesse desistido de uma vez por todas da sua história e da sua identidade coletiva, um congresso de golpistas, correndo contra o tempo, tenta consolidar a nova ditadura, que no momento prescinde da iniciativa militar, mas não prescinde da aparente “passividade” com que a instituição que supostamente deveria velar pela soberania nacional e portanto pela soberania popular, a democracia, parece “observar” a crise de algum pedestal distante, premiando com medalhas políticos corruptos, juízes conservadores e mesmo um ator pornográfico e celebridades da televisão. Aqui, o escárnio se soma ao desprezo pelo país e pelo povo.

Por iniciativa da tosca, inculta, incivilizada, violenta e brutal direita brasileira, a guerra civil latente na sociedade capitalista periférica aqui se aproxima, mais e mais, de uma eclosão de largo alcance que não deveria interessar negociantes e representantes políticos, burocratas e servidores do estado, entre outros, pois o risco de perder suas vantagens e seus privilégios atuais em uma situação de conflito manifesto é grande, maior talvez que a possibilidade de ampliar seus ganhos (2). A crença na ampliação imediata de seus lucros pela via autoritária “tradicional”, superficialmente maquiada de “legalidade” no século XXI, motivou a classe dominante brasileira, seus aliados e serviçais, a promover o golpe de estado. Acreditou e ainda acredita na via golpista para realizar seus interesses imediatos. Seja como for, a aposta é demasiado arriscada, mesmo para os “eternos” donos do Brasil, os mandantes e beneficiários dos inúmeros golpes na história moderna da nação e na brevíssima história da restrita e frágil democracia brasileira.




Hans Magnus Enzensberger



Hans Magnus Enzensberger em textos dos anos 90 (3) contrastava a guerra entre estados, que fortalece o poder estatal interno, com a guerra civil que pode significar, e de fato significa na maioria das vezes, o colapso da organização central e a desagregação das forças combatentes em milícias que se autodestroem e destroem tudo mais em volta. A completa irresponsabilidade de partidos e políticos golpistas e corruptos, da mídia monopolizada e seus parajornalistas, de juízes de limitada capacidade intelectual e moral, de policiais e procuradores fantasiados de justiceiros de gibi, lançou o país numa trágica aventura sem volta.

O próprio dos processos históricos de ruptura, locais e globais, é a capacidade de anular as categorias usuais, desfazer os hábitos e comportamentos comuns, de produzir e revelar o inesperado malgré nous, malgré soi. E, neste sentido o que se pode dizer com alguma certeza é que não haverá retorno ao status quo ante: a direita, malgrado o sr FHC e suas idas e vindas, queima seus navios e destrói dia após dia a sua própria pinguela. Dizer que não há caminho de volta na crise, por um lado é dizer muito pouco do que nos interessa a todos que vivemos a crise cotidianamente. Por outro, é já dizer o suficiente, ou mesmo dizer demasiado.


(1) No site Brasil247 hoje:

Post na página do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso trazia a hashtag #voltafhc; registro foi feito pela coluna Painel; questionado, Xico Graziano, que cuida das redes sociais de FHC, excluiu o post e afirmou que foi um erro de sua equipe”
16/06/2017


(3) Hans Magnus Enzensberg- Guerra Civil, Cia. Das Letras, S. Paulo, 1995



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