A tentativa de golpe de 2016 e a ditadura militar

Marcelo Guimarães Lima





Já se vão várias décadas do fim "oficial" da ditadura militar. As gerações que não vivenciaram o regime militar, a censura, o arrocho, as crises econômicas do período, os sequestros, torturas e assassinatos dos opositores, crimes conduzidos, dirigidos, orquestrados pelo alto comando das Forças Armadas do Brasil no período, tem hoje, graças à tentativa desesperada da direita jurássica brasileira de interromper o processo democrático no país, a oportunidade de experimentar "ao vivo e em cores" (como se dizia antigamente) algo da atmosfera, das intervenções e dos métodos antidemocráticos, da histeria fabricada pelos meios de comunicação, das ilegalidades policiais de servidores nominais do estado e da justiça do estado, da violência e intimidação vivenciadas cotidianamente por toda uma geração de brasileiros.

As tragédias históricas quando se repetem, observou Marx, se repetem sob a forma de farsa. Poderíamos então observar que a tentativa golpista que assistimos hoje no Brasil é ainda, apesar de seus aspectos farsescos, em aspectos importantes a continuação dos tempos trágicos da ditadura militar. Os mesmos personagens agitam as mesmas "palavras de ordem", as mentiras, calúnias e insultos que serviram de justificativa ideológica para o golpe de 1964. A direita jurássica, parte do empresariado que apoiou ideológica e materialmente a ditadura e a repressão assassina, reunidos ontem como hoje na FIESP, por exemplo, os meios de comunicação monopolizados tendo à frente a Rede Globo, de extenso passado golpista, antidemocrático, antinacional e antipopular.

O processo político que marcou o fim da ditadura militar foi caracterizado por Florestan Fernandes como a "conciliação das elites", processo conduzido para afastar o povo das decisões necessárias e fundamentais. Nenhum torturador, nenhum militar golpista, nenhum político servidor da ditadura, nenhum empresário cúmplice e beneficiário da ditadura como, por exemplo, Roberto Marinho, foi jamais responsabilizado por crimes contra o povo e o país. A chamada constituição cidadã que resultou das lutas populares do período, nunca plenamente aplicada, é hoje atacada de modo feroz por uma verdadeira matilha reacionária, por grupos de interesse que, organizados e financiados interna e externamente, se apropriam das formas políticas democráticas para destruir a democracia.

Em grande parte, colhemos hoje os resultados do processo de transição "a meias" que deixou intacto o aparato de mídia da ditadura, sob comando da Rede Globo, e deixou livres os servidores, cúmplices e beneficiários da ditadura militar na política, na economia, no aparelho de estado, etc. A ideologia norte-americana da chamada Guerra Fria foi importada pelos generais golpistas e torturadores em 1964 como justificativa da ditadura: as Forças Armadas se transformaram assim em forças auxiliares do imperialismo mundial e, como a União Soviética e seus perigosos comunistas estavam geograficamente distante, o inimigo designado era o "inimigo interno": a tarefa dos militares foi a violência brutal e assassina contra o povo brasileiro.

Os tempos mudaram, dizem muitos e por razões várias. Seguramente, não estamos mais em 1964 e um indício disto é, para nós, a resistência que se articula e se mostra com mais e mais força de variados setores da sociedade brasileira contra a sanha golpista da direita e da mídia reacionária no Brasil. E, no entanto, não apenas por "nostalgia" se mobilizam os setores mais reacionários da sociedade nacional. Como o Brasil, salvo engano, não está localizado em Marte, mas continua no planeta Terra, a situação internacional incide sobre as contradições internas e, em nossa época neoliberal, de modo avassalador.

A extinção da União Soviética na última década do século passado e o declínio do movimento comunista organizado, claro está não significou a extinção das contradições do sistema capitalista mundializado. Na época da "potência hegemônica mundial", as contradições dos centros articulados do poder mundial se agudizam, se perpetuam e se renovam. Como no passado, e de modo ainda mais intenso, interesses externos e internos se articulam para interromper o processo democrático e o longo e contraditório processo de ascensão econômica de setores secularmente marginalizados da vida nacional. Para as "elites" brasileiras o próprio processo de (relativa) modernização capitalista só é admitido como processo reflexo de subordinação aos centros hegemônicos, ou seja, em linguagem corrente, as classes dominantes brasileiras de origem colonial e neocolonial, sempre viram com desconfiança os processos de relativa autonomização do desenvolvimento material da nação, ainda dentro do marco capitalista, e reagem, hoje como ontem, de modo violento quando um tal processo, ou sua possibilidade, transborda os limites do status quo ante e ameaça mudanças qualitativas nas estruturas das relações de classe no país.

Na conhecida observação do filósofo hispano-americano George Santayana, "aqueles que esquecem o passado estão condenados a repeti-lo". Afortunadamente, a agressividade golpista da direita jurássica brasileira despertou a memória popular no país.

Do mesmo modo como as políticas agressivamente neoliberais do governo do estado de São Paulo contribuíram neste últimos tempos para o despertar combativo da população jovem em defesa de seus direitos a uma educação pública de qualidade, o povo organizado toma ruas e praças da nação para defender e ampliar direitos e conquistas. Como no passado, malgrado a ideologia "oficial" da "passividade" justificando a opressão como "destino" dos oprimidos, a resistência popular mais uma vez vai determinar, além das vicissitudes e dificuldades deste momento, o longo curso da nossa historia nacional.

Como no passado, as elites regressivas, malgrado a violência de que são portadoras, não poderão deter o longo, sofrido e, no entanto, impreterível (e inevitável, não obstante o contexto ideológico da chamada "globalização") processo de construção nacional que passa também, inexoravelmente, pela tarefa de civilizar a barbárie dominante dos "donos do poder" no Brasil.

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